segunda-feira, setembro 29, 2003

GUERRA CIVIL AMERICANA

Os europeus não lhe dão muita importância, mas o que é facto é que ela foi, muito provavelmente, um dos acontecimentos seminais da Idade Contemporânea.
Resolvida a guerra, resolvida a questão da escravatura que dilacerava os EUA desde a fundação, o país ficou finalmente livre para se tornar naquilo que é hoje: a hiperpotência mundial, a nova Roma do século XXI.
Com a vitória da União, todas as atenções e energias que se tinham concentrado no grande problema interno, puderam, finalmente, desviar-se para o palco mundial. É claro que o problema dos antigos escravos não ficou totalmente resolvido. Os negros só tiveram igualdade total perante a lei (escrita) em meados do século XX, e o racismo continua a ser um dos principais cancros da sociedade americana.
Em 1898, 23 anos depois do fim da guerra civil (um mero piscar de olhos em termos históricos), os Estados Unidos devoram o império espanhol de uma assentada. Cuba e Filipinas caiem como fruta madura. Os «Rough Riders” de Teddy Roosevelt carregam sobre os espanhóis na colina de San Juan, e com eles levam as aspirações presidenciais do seu líder. Roosevelt não esconde que quer para a América um papel no mundo digno da sua cada vez maior riqueza material.
Para trás (muito para trás) tinham ficado quatro anos de luta feroz, mas que, no final, não dividiram nada nem ninguém.
Em 1898, a (re)União estava já tão sólida, que o exército dos Estados Unidos pôde dar-se ao luxo de ter nas suas fileiras um general que tinha servido distintamente a Confederação.
O general Joe Wheeler terá mesmo, no calor da batalha, viajado no tempo e no espaço: «Vá lá rapazes», terá ele incitado, «dêem cabo desses yankees!» Quando os seus ajudantes o avisaram, entre risotas, daquilo que tinha acabado dizer, Wheeler limitou-se a sorrir e a desculpar-se: «Ora, só me esqueci por um momento. Todos vocês sabem que eu queria dizer “espanhóis”. Agora eu também sou um yankee que veste o uniforme e segue a velha bandeira do país onde Yankee (Norte) e Dixie (Sul) são as mesmas palavras para toda a terra».
R.S.

quinta-feira, setembro 25, 2003

Sibéria- II

Apesar do se sentirem superiores relativamente aos nativos, os cossacos rapidamente aprenderam que lhes sairia muito caro desprezar toda a experiência acumulada pelos siberianos ao longo de gerações.
(Imagine-se que seria (sobre)viver na Sibéria há trezentos, quatrocentos anos...)
Um dos aspectos onde eles rapidamente adoptaram os costumes locais foi na alimentação, e pelo que chegou até aos nossos dias da culinária local há mesmo que lhes tirar o chapéu.
Os ostyaques e voguls bebiam o sangue das renas fresquinho; quando tal não era possível, aproveitavam-no para fazer panquecas ou para engrossar a sopa. O peixe geralmente era comido cru, e para acompanhar bebia-se seiva de bétula. Os quirguizes, buriates e yakutes adoravam kumis - nada mais, nada menos que leite de égua fermentado. Os yakutes orgulhavam-se particularmente do seu “alcatrão de leite” (não garanto a fidelidade da tradução). Tratava-se de uma mistura cozida de carne, peixe, raízes, ervas e casca de árvores. Tudo isto era bem triturado e misturado, juntando-se-lhe depois farinha e leite. Uma delícia...
Mas o grande pitéu dos siberianos era a rena. Os nómadas da tundra aproveitavam tudo, mas mesmo tudo: os globos oculares eram engolidos avidamente como se fossem azeitonas; os lábios e orelhas eram especialmente apreciados; o conteúdo semi-digerido dos intestinos (fibras de plantas) era utilizado para fazer “pudins negros” (os outros ingredientes eram a gordura e o sangue coagulado).
Eis o génio humano em todo o seu esplendor...
R.S.

quarta-feira, setembro 24, 2003

Sibéria-I

Temos mais um elemento a contribuír com textos para o Tempore: R.S. Ficará nos meus posts, mas com a devida indicação.


"A conquista e colonização da Sibéria pelos cossacos, e pelos russos em geral, tem muitos paralelismos com a conquista do Oeste americano. Um destes é o modo como os povos autóctones foram “assimilados” pelos invasores. Culturas inteiras desapareceram do mapa, muitas vezes sem deixar qualquer rasto.
Os russos, como é óbvio, não precisavam de grandes desculpas para massacrar sem dó nem piedade os nativos siberianos. Mas se, porventura, tal fosse necessário, rapidamente invocavam a superioridade da sua cultura e religião. Provas não faltavam, assim pensavam eles.
Vejam-se os ritos funerários. Os koryaques e os chukchis dissecavam os seus mortos; os yukaghires desmembravam-nos “afectuosamente”, e depois distribuíam as várias partes, já secas, pelos familiares mais próximos; estes pedaços do ente querido eram apelidados de “avós”, e funcionavam como amuletos (custa-me a imaginar o que fariam eles aos inimigos); os kamchadales, pelo seu lado, tinham em mente as necessidades de transporte no Além: davam os cadáveres a comer aos cães, para que os falecidos tivessem uma boa equipa de cães a puxar-lhes o trenó.
Os russos tinham, assim, encontrado os seus “bárbaros”. Curiosamente, nesta mesma altura (séculos XVII e XVIII), a Europa olhava para o czar e os seus súbditos de uma forma bem semelhante."
R.S.

A parte do desmembramento dos mortos para fazer amuletos faz-me recordar (mesmo que a justificação seja diferente) a práctica de guardar relíquias nos catolicismo.

terça-feira, setembro 23, 2003

A lenda de Alexandre

Alexandre filho de Filipe II da Macedónia e de Olímpia do Épiro. A sua carreira é sobejamente conhecida: conquistou um império que ia dos Balcãs à Índia, passando pelo Egipto e Afeganistão. Herdou um reino que fora organizado com punho de ferro pelo pai que tivera de lutar contra uma nobreza turbulenta, as ligas lideradas por Atenas, e Tebas (a batalha de Queroneia representa o fim da democracia ateniense e por arrastamento das outras cidades gregas e de uma certa concepção de liberdade), e revolucionando a arte da guerra. A sua personalidade é considerada de formas diferentes segundo os gostos de quem o examina: por um lado profundamente instável e sanguinário (as destruições das cidades de Tebas, Persepólis, o assassinato de Parménion o seu melhor general, a sua ligação com um eunuco) e que se limitava a usar o pessoal de valor que tinha à sua volta; homem de uma visão de império tentando criar uma síntese entre o oriente e ocidente (o encorajamento que fez do casamento entre oficiais seus e mulheres persas e utilizou Persas ao seu serviço), respeitador dos mais fracos (acolheu bem a família de Dário III seu adversário).
De qualquer modo fez o que pode para expandir o Helenismo: criou cidades com o seu nome com os seus veteranos feridos por todo o território.
Infelizmente nenhuma das fontes contemporâneas sobreviveram (Calistenes e Ptolomeu), nem sequer das gerações posteriores: apenas possuímos textos do séc. I que usaram fontes que copiaram os textos originais... De modo que muitos dos pormenores da sua vida são bastante discutíveis.
Com a sua morte os seus generais repartiram o seu império e a sua família acabou por ser exterminada. Os Epígonos iriam gastar gerações seguidas em conflitos. Apenas Seleuco esteve prestes a reunificar o império (faltando o Egipto) por um curto espaço de tempo. Os seus sucessores fizeram o que puderam para manter o Helenismo vivo: gregos e macedónios eram encorajados a emigrar para as novas cidades. Alexandria no Egipto teve um destino brilhante devido aos cuidados dos Ptolomaicos (o Egipto apesar da sua monumentalidade nunca possuíra grandes metrópoles): tornou-se um porto internacional e um foco de cultura graças à biblioteca; mas outras cidades como Antioquia, Éfeso também brilharam. Reinos no oriente como os greco-bacterianos (Afeganistão) e greco-indianos expandiram o helenismo geograficamente mais do que Alexandre o fizera. Quando os Partos (um povo indo-europeu aparentado com os Citas) ocuparam a Pérsia, esses reinos subsistiram até ao séc. I. a.C. com as ligações cortadas ao ocidente
Roma recuperou o legado Helenístico, e a miragem do império de Alexandre: Crasso e Marco António tentaram conquistar a Pérsia com péssimos resultados. Trajano morreu a meio de uma expedição, Septimo Severo teve o bom senso de desistir a meio e só Heraclito no período bizantino teve uma campanha vitoriosa: debalde, pois os árabes acabaram com a Pérsia Sassanida enfraquecida pelas longas guerras com Bizâncio. O ocidente medieval viu nele o perfeito cavaleiro, incluindo no grupo dos nove bravos e estabeleceu lendas e o “Romance de Alexandre”.
Luís XIV ainda apreciava vestir-se como Alexandre (à maneira do séc. XVII obviamente) e esse epíteto seria sempre apreciado por monarcas absolutos. No séc. XX a sua figura não seria muito retratada pelo cinema: os programas documentário da T.V. terão claramente a sua preferência.

sexta-feira, setembro 19, 2003

Bibliografia

Pediram-nos para passar a colocar uma curta bibliografia sobre os assuntos que abordamos (que seja de fácil acesso, facilmente compreensível, etc). Bem, para este último assunto da decadência romana sugiro as seguintes obras.
- “L’Église de l’Antiquité tardive” de Henri Marrou, Ed. du Seuil. Boa abordagem sobre o cristianismo histórico e as suas consequências no mundo romano no baixo- império.
- “The late roman infantryman”, da editora Osprey, colecção Warrior. Juntamente com um outro sobre a cavalaria tem uma descrição sucinta da evolução dos exércitos romanos tardios.
- Finalmente para os que tem tempo e vontade de ler, a obra de Gibbons “The history of the decline and fall of the roman Empire”. Embora seja uma obra muito antiga, e com preconceitos, descreve os factos com uma tal paixão, que o leitor nada perderá em a ler. Poderá completar e corrigir as falhas com qualquer boa História Universal.


quinta-feira, setembro 18, 2003

Decadência Romana- III

No princípio do séc. V a maioria do exército romano era ainda constituído por romanos (com as devidas aspas que tal termo implica, e com os limitados conhecimentos que temos do real recrutamento por essa época). À medida que os bárbaros foram entrando pelo império, começou-se a fazer acordos em que eles se deveriam fixar num determinado território, recebiam terras e em troca ficavam ao serviço do imperador e lutavam contra os seus inimigos. Ora se a situação de bárbaros ao serviço de Roma não era nova, o recrutamento sempre fora feito por indivíduos que eram treinados, ensinados a falar latim, e equipados por oficiais romanos (esta era uma das formas de romanização), tornando-se na geração seguinte romanos indistinguíveis; na nova situação, eles vinham em grupos com os seus próprios líderes. O resultado foi que progressivamente as tribos foram-se emancipando da tutela romana, e formando reinos; quando em 476 o último imperador romano foi deposto por um grupo de mercenários, pouco territórios (e tropas) restavam ao seu serviço. Os comandantes e chefes que tentavam manter o estado romano nos últimos anos eram também na maioria dos casos de origem bárbara. Só faltava que um decidisse tomar a púrpura, coisa que não sucedeu.

terça-feira, setembro 16, 2003

Decadência Romana- II

Ora em última análise, Roma conquistou o seu império graças às forças das suas legiões. E os seus exércitos no baixo-império eram muito diferentes do que tinham sido na época da república.
Para recrutar soldados recorria-se a vários métodos em simultâneo: voluntários, recrutamento por conscrição (e aí a influência dos grandes proprietários era determinante pois não queriam perder os seus melhores homens e falseavam o sistema), hereditariedade, ou então rusga pura e simples até se até preencher as necessidades. De facto ao contrário do que se disse por muito tempo, o exército romano continuou a ser constituído por gente de dentro do império com excepção de algumas unidades: a barbarização dos quadros só se dá em meados do séc. V (refiro-me ao ocidente) e mesmo assim a defesa local ficou sempre a cargo dos romanos, mantendo-se algumas unidades romanas ofensivas (claro que como toda a gente dentro do império tinha a cidadania romana, o termo refere-se a gente que muitas vezes pouco sabia de latim). Quanto ao valor do soldado romano, poderia ter perdido algumas das suas qualidades (as unidades mais importantes já não eram consideradas as velhas legiões mas sim as auxiliae), mas a realidade é que a guerra modificara-se: raramente se travavam grandes batalhas entre exércitos regulares, mas sim emboscadas e guerrilha que exigia sobretudo flexibilidade e improvisação e menos automatismo nas formações.
Ora outro elemento a considerar, é que o exército era com o império permanente e não uma força recrutada de acordo com as necessidades por algum tempo; logo para se manter um grande exército é preciso dinheiro, muito dinheiro e o ocidente não o tinha: apesar de ter espremido as províncias até levar à revolta dos camponeses (sobretudo na Península Ibérica e Gália), os imperadores do ocidente não conseguiram preservar o seu estado. Poder-se-ia argumentar que o cristianismo enfraquecera o patriotismo romano, mas essa era uma falsa questão: nunca soldados romanos se passaram para o inimigo externo, tinham era a tendência para querer nomear um novo imperador com elevada frequência, entrando em conflito contra outras legiões (mas isso vinha desde o fim da república, assim que terminou a conscrição por períodos limitados)..

sexta-feira, setembro 12, 2003

Decadência Romana-I

Li há uns dias um artigo no blog religar (http://religar.blogspot.com/), a refutar um outro artigo que defendia que o cristianismo fora a razão da decadência do Império Romano, partindo do exemplo de Éfeso. Como não li este artigo não o posso comentar, e é complicado fazer uma análise objectiva sobre o assunto, mas posso dissertar e apresentar alguns dos meus pontos de vista e é o que vou fazer...
Como é que um império que conseguiu vencer tantos adversários sofreu uma decadência tão rápida? Teria a Igreja contribuído para essa decadência ao esmorecer o patriotismo romano?
Em primeiro lugar, os historiadores têm revisto o conceito de decadência. Se analisarmos os sécs. IV e V, estes são muito ricos a nível artístico e cultural (sobretudo se comparados com o séc. II e III). Temos os Padres da Igreja, os Neo-Platónicos, os primeiros passos da arte bizantina (a não ser que não se goste dessas manifestações artísticas mas ai é questão de opinião) a mostrar a vitalidade do império que continuou com Bizâncio. É que quando se fala de que o império se desmoronou, existe a tendência a esquecer que o império romano do Oriente, fortemente cristianizado e urbano ainda aguentou mais mil anos, enquanto que a metade ocidental pagã e rural é que foi conquistada pelos bárbaros.
Aliás rapidamente a Igreja se colou ao poder, e se tivera reticências ao serviço militar nos tempos da perseguição, a partir do momento que o império se tornou cristão considerava um crime grave alguém furtar-se ao seu dever (a pena por deserção no exército era ser queimado a fogo lento).
A Igreja tornou-se fervorosamente patriótica e romana (a ponto de desgostar um neo-pagão como o imperador Juliano que achava que os cristãos só deviam poder ensinar coisas relacionadas com o cristianismo e não cultura clássica). De alguma maneira aumentou a consistência do império.
Um argumento que se apresenta normalmente, é que enquanto o Império pagão fora tolerante, o cristianismo era intolerante perseguindo pagãos, cristãos considerados heréticos e judeus. Roma de facto fora relativamente tolerante (se perseguira pontualmente grupos como os cristãos fora por motivos muito específicos), mas depois das dificuldades do séc. III. (uma série de invasões bárbaras, guerras civis e crise económica), vários imperadores procuraram centralizar mais o estado, obter um maior controlo dos cidadãos (para deste modo ser mais fácil mobilizar recursos humanos e financeiros), e unificar o império em torno de uma ideologia. Com Constantino tornou-se o cristianismo a religião a obter esse monopólio.

quarta-feira, setembro 10, 2003

As Cruzadas vistas pelo Islão - parte III

A Jihad - o fim (?)

O herdeiro de Zengi, Nur al-Din, e o seu sucessor Salah al-Din (“Saladino”), eram extremamente piedosos, observando rigidamente a Sunna e os Pilares do Islão na sua vida pública e particular. Ambos rodearam-se de religiosos e teólogos e sábios em geral. Para além disso fizeram uma activa campanha para espalhar o fervor religioso e propaganda entre os seus súbditos muçulmanos. Com os seus exemplos de religiosidade, Nur al-Din iniciou – e o seu sucessor Salah al-Din cultivou – uma guerra religiosa, uma jihad, contra os Firanj. Enquanto que Zengi apenas podia contar com os seus soldados, o apelo à jihad atraiu os soldados muçulmanos de toda a Arábia, Egipto e Pérsia. Este massivo exército permitiu Salah al-Din esmagar os Firanj na Batalha de Hattin e enfraquecer as forças da Terceira Cruzada de Ricardo Coração de Leão.
A chama da Jihad de Salah al-Din deixou de arder em 1193, quando morreu. O irmão do Sultão, Saphadin, não pretendia entrar em mais guerras, e quando Coração de Leão foi para a Europa, o poderio militar dos Firanj estava praticamente neutralizado e não mais necessidade de derramamento de sangue. A partir desta altura Saphadim acreditava que a coexistência pacífica com Firanj ainda era possível. Várias décadas mais tarde, uma jihad iria finalmente purgar os Firanj da Síria e Palestina, embora até 1291, os muçulmanos ainda partilhassem uma pequena parte desse território com os Firanj.

As Cruzadas vistas pelo Islão - parte II

A Jihad - o início

No início do séc. XII, o mundo muçulmano tinha praticamente esquecido a Jihad, a guerra religiosa travada contra os inimigos do Islão. A explosiva expansão da sua religião durante o séc. VIII tinha-se reduzido às memórias de grandeza dessa época. Após a queda de Jerusalém, muitos proeminentes líderes religiosos, como o qadi Abu Sa’ ad al-Harawi, tentaram convencer o Califa Abássida a preparar a Jihad contra os Firanji. No entanto, somente perto de duas décadas depois é que o sultão turco designou um proeminente militar, um atabeg chamado Zengi, para resolver o problema Firanj.
Após a primeira cruzada, a moral dos muçulmanos estava de rastos. Os Firanj detinham uma reputação de ferocidade entre os Turcos e os Árabes. Com os espectaculares sucessos em Antioquia e Jerusalém, os Firanj pareciam quase imparáveis. Eles humilhavam o poderoso califado egípcio anualmente e faziam investidas em terras inimigas impunemente. Exceptuando os vassalos do Egipto, a maioria dos aterrorizados líderes muçulmanos dos territórios mais próximos pagavam um pesado tributo para assegurar a paz. Zengi iniciou o longo e lento processo de modificar a imagem que os muçulmanos tinham dos Firanj.
Tendo recebido o domínio das terras à volta de Mossul e Alepo, Zengi começou uma campanha contra o Firanj em 1132 com a ajuda do seu lugar-tenente Sawar. Em cinco anos conseguiu reduzir o número dos castelos importantes ao longo da fronteira do Condado de Edessa e derrotou o exército firanj em batalha. Em 1144 capturou a cidade de Edessa e neutralizou de forma efectiva o primeiro domínio estabelecido pelos Cruzados.
Zengi foi o primeiro líder muçulmano a enfrentar os firanj e que não só sobreviveu, como triunfou. Ele provou que os firanj podiam ser bloqueados. Os líderes de Bagdad aprovaram os sucessos de Zengi, e cedo um grande número de títulos precediam o seu nome: O Emir, o General, o Grande, o Justo, o Ajudante de Deus, o Triunfante, o Único, o Pilar da Religião, a Pedra de Base do Islão, …Honra de Reis, Apoiante de Sultões … o Sol dos Merecedores, … Protector do Príncipe dos Fiéis. Zengi gostou tanto da enchente de elogios, que insistiu que os seus arautos e escrivães utilizassem todos os títulos na sua correspondência.
Embora Zengi fosse um grande herói militar, ele foi simplesmente muito implacável e cruel nas suas campanhas contra Damasco para motivar os muçulmanos para uma guerra religiosa. Uma noite do ano 1146, encontrando-se ele alcoolizado, ao ter presenciado a um erro do seu eunuco particular, Lulu (“pérola”), e prometeu mandá-lo executar por incompetência. Mais tarde, enquanto Zengi dormia, Lulu pegou na adaga do seu dono e apunhalou-o repetidamente e fugiu, coberto pela escuridão da noite.

terça-feira, setembro 09, 2003

Os Pictos

uma achega

Os Pictos como povo constituem um enigma. Alguns especialistas defendem que seriam uma tribo celta, outros, por outro lado, crêem tratar-se de um povo mais antigo. Os escritores romanos sempre os destinguiram dos celtas da escócia, surpreendendo-se pela sua ferocidade e o hábito barbárico de se pintarem ou tatuarem.
Até o nome "Pictos" não ajuda, na medida em que deriva da palavra latina picti, que significa simplesmente "pintados" - uma referência às suas pinturas ou tatuagens de guerra. O nome que os Pictos davam a si mesmo perdeu-se.
As descrições dos Pictos traçam um retrato de um povo pequeno, robusto mas delgado, pele amarelecida, de todo diferentes dos Gauleses, cuja pele pálida, altura e constituição impressionavam os escritores romanos.
O folklore escocês fala dos "pechs". Ao longo dos séculos estes foram tornando-se numa raça mágica de fadas e duendes, mas muitos especialistas crêem que se trata duma "memória popular" dos Pictos, o que indica que seriam vistos pelos Celtas da Escócia como uma raça separada e não apenas uma tribo separada. A juntar com as diferenças físicas, parece que os Pictos poderiam ser os últimos vestígios da população pré-Celtica da Grã-Bretanha, mas não há certezas.

sábado, setembro 06, 2003

As Cruzadas vistas pelo Islão - parte I

O Mundo Muçulmano

Na altura das cruzadas a febre da conquista islâmica dos sécs. VIII e IX estava a esbater-se. Durante esta altura o Islão espalhava-se pelo Médio Oriente, Pérsia, África do Norte e Península Ibérica. As províncias deste vasto império eram governadas por sultões, de acordo com a autoridade do Califa, o descendente de Maomé e a figura política central do mundo muçulmano. Um dos mais conhecidos califas desta era foi Harun Al-Rashid, imortalizado nos fantásticos contos de As Mil e Uma Noites.

No entanto, nos finais do séc. XI o mundo islâmico estava fortemente dividido. Um Califado rival tinha ascendido no Egipto, Fatímida, descendentes de Ali Ibn Talid genro e sobrinho do Profeta, premissa esta utilizada para basear o seu poder, revoltando-se contra a autoridade de Abu Bakr, o primeiro Califa de Bagdad. Os apoiantes dos Fatímidas eram denominados Shi'ah i-Ali (os seguidores de Ali), ou Shi'itas. Os apoiantes do Califado Abassida de Bagdad eram Sunitas, porque, segundo o seu ponto de vista, seguiam a Sunna (o caminho, a via) de Maomé. Estas seitas eram rivais políticos, não religiosos, e os membros das duas facções políticas eram muçulmanos, observando o Corão, a Sharia e os Pilares do Islão.

Enquanto o Califa Fatímida conservava a sua soberania, o Califado de Bagdad era essencialmente um fantoche dos Turcos, na medida em que a tribo Seljúcida tinha rumado desde a Ásia Central até terem conquistado grande parte da Pérsia e capturado Bagdad em 1055. Em 1071 derrotaram o exército Bizantino, do qual resultou o diálogo entre o Imperador Bizantino e o Papa que apelou à Primeira Cruzada.
Os Seljúcidas converteram-se ao Islão e mantiveram o Califa em Bagdad, mas o sultão turco detinha as rédeas do poder de decisão a nível político e militar no mundo sunita, mantendo aquele os símbolos da sua posição e prestígio, os palácios, o respeito e o harim (harém). A majestosa cidade de Bagdad foi lentamente caindo na ruína, enquanto hordas de soldados turcos, normalmente alcoolizados, vagueavam pela cidade à noite, contribuindo ainda mais para o caos urbano. Durante as Cruzadas, o Califado de Bagdad era o símbolo vivo da decadência no mundo árabe e das suas irrecuperáveis glórias passadas.

Os príncipes turcos eram geralmente cruéis e não olhavam a meios para exterminarem possíveis rivais quando atingiam o poder, para que estes não o depusessem mais tarde. Normalmente isso incluía o harém do falecido pai, os seus meios-irmãos e, às vezes, alguns familiares mais próximos. Devido à brutalidade das guerras de sucessão, os turcos criaram a figura do atabeg para proteger o jovem herdeiro até que este atingisse a maioridade e pudesse lutar por ele próprio. Ás vezes um atabeg recusava-se a devolver o poder e, nesse caso, o antigo servo ou escravo acabaria por fundar a sua própria dinastia.

Embora o Sultão de Bagdad teoricamente controlasse todos os senhores turcos no seu império, na realidade as províncias eram praticamente independentes de qualquer autoridade central. Em cada província os príncipes turcos lutavam entre si pelo poder dinástico. Barkiyaruq, o sultão turco de Bagdad não era excepção: quando Al-Harawi chegou a Bagdad em 1099 protestando pela perda de Jerusalém, o sultão estava ocupado numa batalha no norte da cidade, lutando contra o seu próprio irmão, Maomé. Durante este conflito, que os árabes observavam com algum divertimento, Bagdad mudou de mãos entre os dois beligerantes oito vezes em menos de três anos.

A situação no Egipto não era melhor. A administração corrupta dos conselheiros, os vizires, levou à má gestão do governo sob a autoridade teorética do Califa Fatímida. Todos os anos os vizires egípcios enviavam exércitos para reconquistar Jerusalém. Estas campanhas eram caracterizadas por falta de planeamento. Embora os recursos do Egipto fossem constantes e às vezes derrotassem os Firanj (os francos, os europeus) em batalha, os ineptos vizires fatímidas nunca reconquistaram Jerusalém.

Durante a Primeira Cruzada, as maiores potências políticas do mundo islâmico eram impotentes face aos cruzados. Pela Síria, Pérsia e Anatólia, os príncipes turcos lutavam constantemente contra os seus parentes. Em Bagdad os Turcos forçaram o califa Abássida a retirar-se para os prazeres perfumados do seu harém. Os vizires egípcios apoderavam-se da administração e operações militares do califado Fatímida. Em resumo, o mundo islâmico estava fragmentado, caótico, à mercê da conquista pelos firanj.

quinta-feira, setembro 04, 2003

Esclarecimentos

Vou fazer alguns esclarecimentos em relação a algumas personagens do último post.
Kaltenbrunner- Alto dignatário da Gestapo e das SS, chefe da SD (uma espécie de polícia de segurança). Era em última análise responsável pelo envio de presos para os campos de concentração e execução nos campos de extermínio. Foi condenado a ser enforcado no julgamento de Nuremberga (a sua justificação é que se limitava a receber as ordens de Hitler e Himmler).
Canaris- Grande Almirante e chefe da Abwehr (serviços de espionagem do exército). Detestando os nazis, forneceu informações aos aliados, ajudou a salvar
muitos adversários destes, tentou organizar vários golpes de estado que falharam todos. Acabou executado em Abril de 1945 pelas SS (parece que Himmler sabia da sua culpa desde 1943, mas nunca agiu até que o fez por medo que um dos seus subordinados o fizesse, embora seja impossivel saber o que de facto pretendia).
Himmler- Chefe da Gestapo, SS, mais fiel seguidor de Hitler (até as coisas desabarem), responsável pela política de extermínio, etc. Era uma pessoa muito tímida e afável, que gostava de agradar aos seus interlocutores: por exemplo era capaz de servir uma chávena de café e torradas a um dos seus subordinados enquanto se discutia uma nova forma de gaseamento ou o que fazer a uma determinada população numa reunião. Isto não é piada, acontecia mesmo, e mostra o grau de alienação dos nazis.
Mais uma informação: para quem acha estranho existirem 2 serviços secretos, fique saber que existia ainda um terceiro a cargo do ministério dos negócios estrangeiros. Hitler gostava de organizar serviços paralelos com as mesmas funções para competirem entre si. Normalmente acabava num atropelo de funções e sabotagem mútua; os nazis apesar da tradição alemã eram muito pouco eficientes.

quarta-feira, setembro 03, 2003

O mal e o mal

Albert Speer e Schelemberg são duas figuras menos conhecidas que os nazis de primeiro plano. Mas ambas merecem ser conhecidas pelos respectivos papeis do que eram os nazis não convictos do regime e que provavelmente representava a maioria.
Speer era um arquitecto talentoso que ganhou a admiração de Hitler. Tendo excelentes talentos de organização para as obras que lhe eram encomendadas, Hitler nomeou-o a meio da guerra ministro do armamento, achando que ele iria fazer um bom trabalho. Ora Speer fez mais que um bom trabalho: utilizando critérios de planificação de objectivos mas descentralização nas fábricas conseguiu triplicar a produção de armamento num ano e meio; permitiu assim que a Alemanha prosseguisse o esforço de guerra, prolongando a duração desta. Foi assim considerado pelos aliados a figura mais importante na Alemanha Nazi, mais importante que Himmler ou o próprio Hitler (qualquer um deles poderia ser substituído que nada mudaria no regime). Ora Speer quando foi julgado em Nuremberga foi o único que se considerou culpado: achava que independentemente de ter realizado ou não as acções de que era culpado, devido à sua conivência com o regime era de facto culpado. Esta atitude como a que é a seguir descrita valeu-lhe ser poupado à forca.
Depois da invasão da Polónia e URSS, para substituir a mão-de-obra alemã que estava recrutada, os nazis recorreram a escravos de leste; estes eram presos em rusgas pelos SS e transportados até fábricas. Lá, eram obrigados a dormir ao relento e não lhes era fornecida alimentação; ao fim de uns dias morriam e eram substituídos por outros. Speer numa reunião com os industriais alemães (estamos a falar de civis e não nazis empedernidos) reclamou que não lhes fornecia mais prisioneiros, que passassem a alimentá-los e cuidassem deles. Himmler secundou Speer, e os industriais tiveram de se inclinar (os SS estavam fartos de ser eles a ter de fazer rusgas, trabalho indigno e para se matar devia-se fazer com ordem e disciplina). Por horrível que pareça, as condições nas fábricas conseguiam ser piores do que nos campos de concentração. Por que é que não se fala dessa situação? É que os industriais, terminada a guerra foram utilizados pelos aliados para reconstruir o país e muitas dessas empresas ainda agora existem; os SS pelo contrário eram excelentes bodes expiatórios por tudo o que ocorrera de mal no país (isto não pretende retirar-lhes a culpa dos seus crimes, apenas dizer que outros fizeram o mesmo e que se saíram bem).
Speer descreveu no seu livro “Inside the Third Reich”, a sua carreira, o seu fascínio por Hitler, a sua crença e depois desilusão. Mas não fala das condições dos prisioneiros. Era considerado um bom homem, bom pai de família que fez o melhor que pode. E isso torna tudo muito mais assustador, pois não era um carrasco sanguinário como Kaltembrunner, ou sequer um homem medíocre, incapaz de distinguir o bem do mal como provavelmente Himmler.
Schelemberg era de outra têmpera. No seu livro “O labirinto”, diz que entrou no partido nazi porque era jovem, ambicioso e queria subir depressa. Não foi enganado, não era fanático. Galgou as escadas dos poderes da hierarquia e tornou-se o nº 2 de Himmler. Mas a sua actividade também o salvou da forca: dedicou-se aos serviços secretos e não às políticas de limpeza racial. Ficou assim a conhecer bem os meandros da política internacional e viu-se perante as exigências contraditórias dos seus superiores. Ajudou a salvar alguns adversários e mesmo judeus desde que isso não implicasse arriscar muito a sua pele. No seu livro não fala do que sucedeu aos judeus; não que tivesse problemas de consciência (isso nunca foi problema para ele), mas não era da sua esfera. Ficou mais conhecido por tentar convencer o seu chefe a destituir Hitler e fazer um acordo de paz com os aliados.
Não era um predador por natureza, mas não era um benfeitor, a tentar travar o sistema com um Canaris. Ficou extremamente desiludido quando no final da guerra quase não lhe ligaram, não o prenderam e deixaram ir à vida dele, pois significava que não davam grande importância; pior foi não o colocarem à frente de um grupo de alemães que fazia contra-espionagem aos soviéticos. Por vezes o crime não compensa muito.

terça-feira, setembro 02, 2003

Comida inglesa deliciosa

Na primeira metade do séc. XV, o rei de Inglaterra Henrique VI era candidato ao trono francês. Possuindo a cidade de Paris, foi coroado rei de França. Por ocasião das festividades, foi dado um grande banquete no qual estavam convidados parte da população de Paris: a nobreza, clérigos, a burguesia, mesteirais e quem conseguisse entrar. Mas deu-se um pormenor desagradável: os cozinheiros eram ingleses. O resultado foi que os convidados não comeram quase nada devendo ficar para os criados (como era tradicional, os restos iam para os criados). Mas estes acharam-na também imprestável. Decidiu-se então dá-la aos hospitais (que na época funcionavam também em parte como albergues para pobres), mas mesmo os residentes não gostaram. Para os que acham que esta estória é mais uma prova de chauvinismo francês, ela foi relatada por um defensor da causa inglesa e que ficou contente quando viu a Joana d’Arc arder (é um clérigo anónimo de que apenas se sabe que ensinava na Universidade de Paris). Faz-nos duvidar da capacidade de evolução dos povos.